Os dias da Linhaceira: 28 de Julho de 2009

A data é meramente acessória: foi neste dia que o documento (datado de 2005) foi publicado por Hugo Leitão, ensaiador do Rancho Folclórico da Linhaceira, no seu blogue Alto Ribatejo.
Importante mesmo é este estudo sobre "O fado batido, dançado e cantado", que inclui os importantes testemunhos sobre a Linhaceira que abaixo publicamos (o texto completo pode ser lido no referido blogue) e que complementamos com a fotografia que mostra precisamente o agrupamento linhaceirense a "bater o fado".


"De tudo o que foi registado desde Maio de 2002 até hoje, pelo Rancho Folclórico de Linhaceira e sobre este aspecto particular do fado, poderemos tão só relatar aquilo que relativo a este tema nos foi contado e que sobejas razões merece o registo e a sua divulgação.
O fado sempre foi uma “moda” popular em Linhaceira, nas suas vertentes tocada, cantada, batida e dançada. Contudo sempre em diferentes circunstâncias, a saber:

“Bater o fado”
O termo (FADO DE TABERNA) que se tornou um pouco usual no Concelho de Tomar para chamar este tipo de fado, não é de todo comum na aldeia de Linhaceira para descrever este “estilo”, antes sim, “bater o fado” ou “isso era para os homens” (nas tabernas ou não).
Regra geral era batido na taberna sendo que por exemplo, a Dª Maria Virgínia Brás, nos conta como os tocadores se punham em cima do “caixão” (uma arca grande ) para tocar e fugir á confusão e resto era...”um disparate”!
O Ti Manuel Diamantino, explica que era “no rescaldo das taberna é que havia brincadeira” ou então na casa do baile, se batia o fado, mas desde que já não houvesse mulher nenhuma na sala ”é que se faziam brincadêras”. O que evidencia o estilo arrojado da linguagem utilizada e “as figuras” que a que se iriam sujeitar os homens, enquanto batessem o fado.
De resto este, a par do Fandango, era muito popular nas tabernas do cruzamento das quatro estradas em Linhaceira – a Cascalheira – assim como nas tabernas e ajuntamentos da Feira do Ano em Santa Cita.

Como nos diz o Ti Zé Camilo (um dos poucos tocadores de harmónio desta altura, ainda vivo), “havia deles que parece que tinham molas nas pernas” e diz mais “...haviam fados de cantar e fados de bater...nos de bater, os homens faziam uma roda e um deles vai pró meio, quem está de fora está á espera da pancada...o que tiver ca boca aberta é o que leva e o que tiver cas pernas abertas aleija-se nas partes!”.
A mulher nunca “bateu o fado” em Linhaceira, mais depressa se vingava do marido por se perder a altas horas nesta brincadeira. Como se ouviu: ”...as mulheres nunca cantaram o fado e ralhavam cos homens por causa da bubadeira que rasgavam as calças e elas é que serziam.”
O fado era batido, ao som de uma viola (“violão”) tocadores como o Mário Alves da Portela e o Carlos Salvador, de um bandolim, o António Carvalho, uma “flaita” em junco, de gaita-de-beiços, de um harmónio ou de uma concertina, assim foram oAugusto Lopes, o Inverno da Roda ou o Zé Pêxe etc.
Do que nos foi relatado e do que ainda hoje se pode ver em Linhaceira, (por indivíduos que não estão ligados ao folclore) existem dois modos de bater o fado, em que para ambos são comuns estas disposições:
• Bate-se e canta-se o fado ao toque de um harmónio, acompanhado pelo violão.
• Forma-se sempre uma roda com os homens que se dispõem a bater o fado e que não estão numa postura rígida, se querem dançar dançam se não estão parados á espera.
• O parceiro “que recebe”:
1. Flecte os joelhos ligeiramente,
2. Coloca os calcanhares quase juntos,
3. Os braços, levanta-os, fazendo o equilíbrio no momento em que recebe a batida.
• O parceiro “que bate”
1. Fica no meio e vai andado de modo irregular ao som do fado.
2. Faz “meneios” e “ameaços” vários aos que estão de fora.
3. Bate como sabe, mas sempre certo !
4. Saber bater o fado, é um segredo que muito poucos conhecem, e há deles cá, que batendo o fado há muitos anos ainda não conseguem acertar.
5. Há que bater no “ponto” ( conceito que não se traduz pela palavra mas antes pelo modo como cada qual sente a música).
6. Pode-se bater e “insistir” em quem quiser e as vezes que entender (mas sempre no final “da frase musical”) sendo que a seguir a esta é que recua.
7. Por fim, depois de ter batido em todos os que estão na roda ou, desistindo simplesmente de o fazer, abraça-se ao parceiro e roda junto com este deixando-o no meio da roda.

De seguida há duas variantes, que na maior da vezes são jogadas em separado e noutras ao mesmo tempo, para quem as domina, confundindo ainda mais quem recebe, e consistem em bater usando as seguintes partes do nosso corpo:
De barriga (rec. Sr António Pereira, Sr Artur Gameiro, Ti Manuel Diamantino)
• Como nos disseram:”...era barriga com barriga, mas sem ofender!”
• ”...a bater sem bater...um fingir que bate”.
• Temos para nós que este é talvez o modo mais “leve” mas o mais traiçoeiro.
• A pancada é dada de modo seco, de barriga contra barriga (há quem avance o peito o que é errado) e insiste (sempre dentro do “ponto”) as vezes que entender até desequilibrar o parceiro.
• Este modo permite dentro da mesma “investida” bater em dois ou mais parceiros de seguida, usando um “passo pulado”.
Com os joelhos (rec. Ti Zé Camilo e António Inverno)
• O modo mais agressivo.
• O que bate usa a face “de dentro” da coxa para atacar a face de fora da coxa do parceiro.
• Neste gesto bate o pé contrário no chão, marcando bem o movimento, quase que assustando ou desviando a atenção do parceiro sobre o lado de onde vem a pancada.
• Há quem use o joelho, por não saber, acabando como é natural por se aleijar ou aleijar alguém.
Ambas a formas têm como fim último, desequilibrar ou jogar ao chão o que recebe.

3. O fado cantado ao desafio ou em quadras soltas
Como se ouviu: “...as quadras do fado era tudo asneiras e eram cantadas por homens pegando no ponto...”Quando no meio dos homens este é cantado ao som de qualquer dos instrumentos referidos acima e não era para todos, dado que é preciso muita imaginação e prática para “pegar na deixa”, isto é começar com a mesma frase ou noutros casos na mesma palavra que “deixou” o cantador anterior.
Versavam principalmente sobre os defeitos pessoais de um e de outro, e se tivéssemos que apresentar excertos deste cancioneiro específico, notaríamos como é peculiar, aqui e nesta região, a comparação das qualidades/defeitos dos homens com as dos animais.
O fado cantado em quadras soltas era comum tanto na taberna como nos bailes das Casas de Fora (a maior divisão das casa de então) ,ou na parte de fora quando já não se cabia nesta, em barracões da terra como o Flecheiro, nas eiras (do Sapateiro) e por fim nos quartéis do Rancho nas Quintas ao redor para onde iam trabalhar de segunda a sábado.

4. O fado Bailhado
Graças à natural tendência do povo para tudo bailar, e para aplicar á dança qualquer melodia que lhe caia no agrado, como atrás nos disse José Alberto Sardinha, entre todas as modas do repertório do tocador do baile pois também se bailava o fado quando este era tocado. Quanto á dança, bem, como nos dizem a maior parte das vezes, “era como ás outras, era agarrados !”
Do cancioneiro recolhido em Linhaceira ficam-nos na memória quadras “brejeiras” que estão sempre disfarçadas de cenas da vida do dia a dia. Aqui ficam umas.
Ó menina guarde o melro
Que vai á minha horta
A depenicar-me os tomates
Á procura da minhoca

Todo o homem que casar
Deve ter o pau ao canto
P´ra benzêr a mulher
Quando lhe der o Cobranto

Sempre fui mui atilado
Nunca fui interessêro
Da menina quero-la toda
Do sê pai quero o dinheiro

Não te lembras ó menina
Daquela noite no V´rão
Tu a contares ´strelas
Eu as pedras do chão

É assim e muito mais...

Uma nota para darmos conta do que dizia a mulher sobre isto: “...o fado? Era o da taberna, que os homens batiam nas tabernas com umas concertinas sem jeito nenhum e depois ás tantas vinha o tocador, (não interessa agora) pos Fangueiros acima sempre tocado pela mesma, ai agora sempre a tocar a mesma! ...nós também cantávamos, mas era nas mondas.”
Tentámos dentro do possível, descrever aquilo que também a nós nos contaram. Somos da opinião que todos os que puderem não deviam perder a oportunidade de “bater o fado”, pois é na verdade um “jogo” divertido, salutar e enérgico, além de que perpetua uma tradição que muitos julgam perdida."

Hugo Leitão

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